domingo, 16 de março de 2014

O Trabalho dos Coveiros

“É justo zelar pela
incolumidade dos coveiros, cujo ofício é tão necessário, porque
sepultam na terra os corpos dos mortos, junto com os erros dos
médicos, devendo, pois, a arte médica compensá-los com algum
benefício por sua própria dignidade ameaçada”. (Ramazzini, 2000)1

Caros leitores,

Hoje vou-vos confessar uma experiência um pouco diferente e macabra no decorrer desta semana de estágio. O local da vistoria não é algo muito agradável, mas à semelhança de outros estabelecimentos, existem trabalhadores que estão expostos a riscos inerentes à atividade que exercem. Como refere Ramazzini1 na frase em cima descrita, já devem ter percebido que a vistoria foi realizada a um cemitério.
Foi solicitada a integração da avaliação de riscos para a segurança e saúde do trabalhador no conjunto das actividades do serviço, devendo adoptar as medidas adequadas de protecção (art. 15º nº 2 alínea b) da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro)2, nomeadamente do coveiro e supervisão. A falta de formação por parte dos trabalhadores dos cemitérios é notória e deve ter tida em consideração. O trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de actividades de risco elevado (Lei nº102/2009, de 10 de Setembro). 2
Fig.1 - Trabalho de um coveiro 3
A palavra cemitério é originada do termo grego kouméterion, que designava o lugar onde se dormia, dormitório. Mas, com a influência do cristianismo, tomou o sentido de campo de descanso pós-morte, campo santo ou necrópole. Vários povos antigos tinham costumes para tratar ou enterrar os seus mortos (AQUINO; CRUZ, 2010).4
Durante muito tempo, os cemitérios foram considerados apenas como locais de sepultura de corpos humanos, não representavam qualquer perigo à saúde pública e ao ambiente. Segundo Santos (2007) 5, os cemitérios podem se assemelhar a um aterro sanitário, visto que em ambos são enterrados matérias orgânicas e inorgânicas, com um agravante para os cemitérios, pois a matéria orgânica ali enterrada tem a possibilidade de carregar consigo bactérias que foram, provavelmente, a causa da morte do indivíduo, podendo colocarem risco o meio ambiente e a saúde pública.
Os corpos humanos após a morte entram em decomposição e liberam substâncias tóxicas ao meio ambiente, na destruição dos corpos existe uma sequência natural de processos: mudança de coloração, gaseificação, coliquação e esqueletização (SILVA et al., 2008).6 No período coliquativo ou também conhecido como período  humoroso, é liberado o necrochorume, trata-se de uma solução aquosa, rica em sais minerais e substâncias orgânicas desagradáveis de cor castanho acinzentada, viscosa, polimerzável, de cheiro forte, e grau variado de patogenicidade (ALMEIDA; MACEDO, 2005).6 O necrochorume é constituído de 60% de água, 30% de minerais e 10% de substâncias orgânicas, duas delas altamente tóxicas, como, a putrescina e a cadaverina (ALMEIDA; MACEDO, 2005, SÓRIA; RAMIREZ, 2004). 7
Um cadáver de 70kg em média libera 30L de necrochorume de forma intermitente durante o período de 5 a 8 meses após a sepultura (MELO et al., 2010).O mesmo além de contaminar o lençol freático, comprometendo a qualidade das águas subterrâneas, através do consumo das mesmas, a população corre um grande risco de contrair doenças (PIRES; GARCIA, 2008)8, assim como o coveiro que está exposto constantemente a certos riscos biológicos, tais como:

Local
Cemitério
Tarefa
Abrir e fechar sepulturas e efectuar o transporte; depósito e levantamento de restos mortais; Limpeza de covas e jazigos; realização de sepulturas e exumações; lavagem da ossada aquando da exumação.
Natureza
Espécie do Agente
(Portaria n.º 1036/98)
Classificação do Agente
(Portaria n.º 1036/98)
Nº de Trabalhadores Expostos
Exposição
Bactérias e afins
Clostridium perfringens
2

Frequente
Salmonela typhi
3

Frequente
Salmonela paratyphi
2

Frequente
Shingella
2

Frequente
-----
-----

Esporádica
Vírus
Vírus Dengue tipo 1 a 4
3

Esporádica
Febre Amarela
3

Pouco Frequente
Parvovírus humano (B19)
2

Pouco Frequente
Hepatite B
3

Pouco Frequente
Hepatite C
3

Pouco Frequente
Outros vírus
2; 3 e 4

Esporádica
Exposição: Continuada/Rotina /Frequente/ Ocasional /Pouco Frequente/Esporádica

Apesar de em Portugal muitos destas doenças não se aplicarem, ainda assim são passíveis de ocorrer. Além das doenças transmitidas pela água, existem uma grande probabilidade de proliferação do mosquito Aedes Aegypti, que transmite o vírus de dengue e febre amarela, pela conservação de água nos vasos, além de outros animais, como escorpiões e baratas (PIRES; GARCIA, 2008).7 Outro aspecto possível, que deveria fazer parte da gestão ambiental dos cemitérios, é o cuidado com os resíduos sólidos, como os restos de roupas dos cadáveres, as próteses e o pacemaker, que deveriam ser separados do lixo comum e serem destinados para a colheita seletiva como resíduos perigosos. 
Durante o processo de sepultura o coveiro costuma usar cal virgem (óxido de cálcio anidro), que é uma substância oxidante que maximiza a decomposição devido à sua acidez e minimiza o vazamento de necrochorume para o solo, pois absorve o líquido cadavérico evitando a contaminação da terra e diminuindo a humidade excessiva do solo.
Após a priorização dos problemas que fui registando, cheguei ao foco da diagnose, incide nos problemas posturais, envolvendo os constrangimentos ergonómicos no ato de cavar as covas e descer o caixão.
Por se tratar de um trabalho em ambiente aberto, num clima de temperatura e humidade elevadas, com alta incidência solar, a proteção individual a esses agentes agressores constitui outro aspecto importante a ter em atenção na avaliação dos riscos.
Quanto ao uso de ferramentas, nomeadamente pás, estudos apresentados no artigo “The Lumbar Spine Load During Digging nad Shovelling with a Magnun Twingirp Handle Respectively na Ordinary Handle” (OBERG)9, demonstram que com uma adaptação em certas ferramentas de trabalho é possível reduzir cargas e implicações ao sistemas músculo-esquelético.
A figura em baixo, demonstra uma simulação do uso de uma pá com uma manivela para aliviar a carga sobre a coluna vertebral.
Fig.2: - Constrangimentos posturais na espinha
- Alívio para execução da tarefa, através do uso de uma manivela no centro do cabo da ferramenta
O estudo concluiu que devido à possibilidade de um trabalho com postura ereta com a nova ferramenta (ou implementação da mesma) há uma redução das forças dos músculos e uma diminuição da compressão dos discos intervertebrais em 50% em comparação ao quadro que se apresentava no uso da ferramenta sem a adaptação.  Isto demonstra que, com o desenvolvimento de novas ferramentas, ou mesmo adaptações nas existentes, é possível reduzir danos ao operário, aumentando sua eficiência e produtividade.
Assim sendo, concluo que: para a tarefa desenvolvida pelo coveiro é extremamente necessário redesenhar ferramentas, capacitar as pessoas, sistematizar a tarefa, direcionar o uso dos EPI´s (uso de máscara para a colocação de cal virgem no momento da supultura e lavagem da ossada com lixívia; uso de calçado e vestuário adequado). Possivelmente possibilitará uma melhoria na execução da atividade, causando menos danos a saúde física e mental do trabalhador, contribuindo assim para a melhoria de qualidade de vida.
Acredito que para evitar os impactos causados pelos cemitérios, as legislações deveriam ser mais rígidas e o governo deveria investir mais na fiscalização. Uma das possíveis soluções discutidas por estudiosos poderia ser a cremação (PIRES; GARCIA, 2008)8. Segundo Julio Mariath (1995), “a cremação apresenta uma grande vantagem na destruição de microorganismos patogénicos e os seus esporos, agentes das moléstias infeciosas, concorrendo poderosamente para o desaparecimento das epidemias.” 10

Referências Bibliográficas:

1 - Ramazzini, Bernardino. As Doenças dos Trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrela. 3.ed. São Paulo: Fundacentro, 2000.
3- Trabalho de um coveiro
4 - AQUINO, J. R. F; CRUZ, M. J. M. Os Riscos ambientais do Cemitério do Campo Santo, Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Geociências, 2010.
5 – SANTOS, R. M. Cemitérios: Uma ameaça a saúde humana? 24º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental. 2007.
6 - SILVA, F. C; SUGUIO, K; PACHECO, A. Avaliação Ambiental Preliminar do Cemitério de Itaquera, segundo a Resolução do CONAMA 335/2003, Município de São Paulo. Revista UnG – Geociências.
7 - MELO, D. B. G; TUDOR. F; BERNARDINO, V.N. Relatório do Projeto Cemitérios Sustentáveis. Campinas, 2010.
8 - PIRES, A. S; GARCIA, C. M. São os Cemitérios a melhor solução para a Destinação dos Mortos?. IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 - Brasília - DF – Brasil.
9 - OBERG, Kurt E. T. The lumbar spine load during digging and shoveling with a magnum twingrip handle respectively an ordinary handle. Article. Swedish University of Agricultural Sciences.

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